Publicado 9 de fevereiro de 2017 10:22. última modificação 9 de fevereiro de 2017 10:22.

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O que nos ensina o caos na segurança do Espírito Santo?

por Daniel Cerqueira* — publicado 08/02/2017 20h09, última modificação 08/02/2017 20h53

Não faz muito tempo, o estado implantou políticas bem-sucedidas que o tiraram da lista dos mais violentos do Brasil

A greve da PM instalou o pânico em terras capixabas

A greve da PM instalou o pânico em terras capixabas

O Espírito Santo era apontado como modelo de segurança pública no país, quando eclodiu a greve da Polícia Militar, cujo saldo em cinco dias foi de 87 mortes e mais de 200 lojas saqueadas. Quais lições podemos extrair dessa experiência?

O primeiro ponto a destacar é a fragilidade do nosso contrato social, sustentáculo da democracia, que aqui subsiste fundamentalmente na base do sistema coercitivo. Essa situação dá um incrível poder de barganha às organizações policiais. E elas o utilizam recorrentemente, colocando em pânico governadores e a sociedade, ainda que no caso em questão o pleito seja justo, uma vez que não é razoável manter sem reajuste salarial nominal por três anos uma categoria que arrisca a vida todos os dias nas ruas.

Dizia Jean Jacques Rousseau que a preservação da vida e a garantia da segurança e bem-estar seriam possíveis apenas pela afirmação de um contrato social, que depende de igualdade de oportunidades, justiça social e comprometimento entre os cidadãos. No Brasil das abissais desigualdades, a paz nas zonas nobres das cidades é forjada com base na exclusão e segregação dos indesejáveis, ou seja, os pobres, negros e moradores da periferia.

Nesse contexto, a polícia funciona como o último biombo, de modo a manter a normalidade dentro do cordão sanitário onde vive a elite dourada. A crise no sistema prisional é outra faceta do mesmo fenômeno. Desde 1980, o aumento de 1.180% no número de encarcerados não conseguiu deter a crescimento no número de homicídios, de 336% no período. Desde então, mais de 1,3 milhão de indivíduos foi assassinado no Brasil, num triste recorde global. E assim naturalizamos a morte e o encarceramento dos jovens negros e pobres.

Poucas autoridades no Brasil ousaram remar contra a maré do populismo penal e da segregação dos miseráveis. O caso do Espírito Santo é pedagógico. Em 2011, o governo lançou um dos mais bem-sucedidos programas de segurança pública da atualidade, o “Estado Presente”. Assim como fizeram as nações e cidades que conseguiram diminuir substancialmente a criminalidade em seus territórios, houve um comprometimento do governo capixaba com a expansão dos direitos civis, como forma de encerrar os ciclos de violência e a produção de criminosos na sociedade, baseado em dois pilares: investimento em ações preventivas de cunho social, com o foco nas comunidades socioeconomicamente mais vulneráveis e nas crianças e jovens aí residentes, para evitar que elas se tornassem presas fáceis do crime organizado e desorganizado; e investimento em um sistema de repressão qualificada, em que a inteligência com o uso intensivo de informação, a boa gestão e o absoluto respeito aos direitos de cidadania eram os ingredientes para a aliança com as comunidades e para o bom desempenho do trabalho policial.

Resultado: pela primeira vez, desde 1980, o Espírito Santo saiu da lista dos cinco estados mais violentos do Brasil, a partir da queda na taxa de homicídio por seis anos consecutivos. O sistema prisional, antes um dos piores do País, com superlotação e detentos amontoados em contêineres, passou a ser um modelo em termos de gestão e oportunidades para a ressocialização dos detentos.

O que aconteceu? Comprometimento é a resposta mais curta. Muito dinheiro e energia foram investidos. Diagnósticos territoriais detalhados precederam o planejamento das ações, monitoradas continuamente. Houve uma verdadeira revolução na produção de informações e de inteligência policial. O sistema de incentivos implantado ia além do controle, com a cobrança de metas, mas valorizava o bom profissional. O estado passou a estar presente nas comunidades mais pobres, não para pacificá-las, mas para identificar as demandas da população e oferecer serviços públicos no campo da assistência social, saúde, trabalho, cultura e educação. O jovem que começava a faltar aula, num preparatório para a evasão escolar, era identificado e chamado ao diálogo, ao lado da família.

Certa vez, testemunhei a transformação que um simples instrumento musical produziu na vida de um jovem, residente em uma das comunidades mais pobres da região metropolitana de Vitória. O garoto participava de um programa público de orquestra juvenil. Aquele instrumento, destoante de todos os outros objetos do casebre, era um símbolo de orgulho para toda a família. Naquele momento, vi que existiam motivos para a esperança por dias melhores. Hoje, com o aquartelamento da Polícia Militar, vemos as sombras de um passado de tragédias que têm marcado a história do Brasil.

Ficam, portanto, duas lições da experiência do Espírito Santo. A primeira: com comprometimento com a vida dos cidadãos, método e ações preventivas é possível mudar a realidade de sangue e lágrimas, que tanto custa ao País. A segunda: a estrada para a paz social é longa e envolve políticas públicas de Estado, cujo investimento em educação e oportunidades deve atingir amplamente a muitas gerações, sem o que ficaremos eternamente reféns da crise na esquina, que separa tenuamente a tragédia da redenção.

* Pesquisador do Ipea, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor de Causas e Consequências do Crime no Brasil.

Fonte: cartacapital.com.br

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