Publicado 22 de fevereiro de 2019 08:56. última modificação 22 de fevereiro de 2019 08:56.

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Artigo: o papel da esquerda pós eleições de 2018

Por Domingos Leonelli

 

A sociedade moderna já revolucionou a militância política em termos de comunicação digital. Além das discussões políticas pelo Facebook, das mobilizações convocadas pelo whatsapp, proliferaram também os sites e blogs políticos de variadas tendências políticas que, em grande medida, superam jornais, revistas e até canais de rádio e TV. Informações e opiniões são atualizadas por minuto e, quem acompanha pelo celular ou pelo computador os blogs e sites de notícias, praticamente não vê nada de novo nos noticiários noturnos de TV e rádio, ou nos jornais da manhã.

Para o bem ou para o mal, milhões de pessoas são emissores e receptores de informação e opinião políticas.

Assim, é que no terreno instrumental a política já esta inteiramente “up to date”. Mesmo os acertos, as fofocas e os conchavos são, em grande parte, revelados por sites especializados.

E ainda tem as “fake news” que, de certa forma, são também reveladoras das intenções dos seus emissores.

Velhos axiomas da política, como um que o ex-deputado Jutahy Magalhães Jr, me citou anos atrás, continuam válidos numa sociedade digital: “quando mentem para mim eu levo a sério e fico agradecido, pois a mentira traz sempre uma informação e revela no que meu interlocutor quer que eu acredite”.

A vitória da ultra-direita nas eleições presidenciais de 2018 que dizimou o centro e a direita tradicional e derrotou a centro-esquerda no segundo turno, além do uso científico e em grande escala da parafernália da internet, largamente manipulada e fortemente financiada (robots, fake news, etc.), contou também com um dado absolutamente relevante: o conteúdo.

Bolsonaro revelou-se o personagem certo, no lugar certo, na hora certa, para a veiculação de um conteúdo radical e “revolucionário” na forma, contra-revolucionário na essência. Tudo traduzido na linguagem simples, rápida e rasteira dos celulares e notebooks. Mensagem rápidas e fáceis que traduziam os conteúdos mais longos e didáticos das aulas on line de Olavo de Carvalho e os textos de seus seguidores, como o diplomata Ernesto Araújo (hoje Ministro), da pastora Damares Alves na área de costumes, do “príncipe” Philippe de Orléans e Bragança e até de uma certa contra-cultura de direita de um tipo como Alexandre Frota. Na área econômica trouxe ao debate as propostas radicais do neo-liberalismo de Paulo Guedes e seus “Chicago boys”. Apropriou-se também da onda anti-corrupção provocada pela Lava Jato, concluindo a operação de marketing com o convite a Sergio Mouro para o Ministério.

E a cobertura desse bolo de conteúdos mais ideológicos foi a mensagem geral de “acabar com tudo que esta aí”. Nesse tudo, inclui-se o toma-lá-dá-cá da política tradicional, a corrupção, os acordos políticos, a mídia (parte dela) que ficou contra. E também o desemprego, a “ideologia de gênero”, os direitos trabalhistas excessivos que tornaram “difícil ser patrão neste país”, os direitos dos índios a terras tão grandes, a política externa de apoio a Cuba e Venezuela.

A verdade é que desde a redemocratização. Não se assiste a uma campanha eleitoral tão rica de propostas e conceitos, tão claramente expostas.
Tudo, é verdade, apresentado unilateralmente sem debates nem uso dos canais abertos de TV e rádio, já que Bolsonaro possuía apenas 8” de tempo de TV.

Se o marketing político e a propaganda de modo geral, já possuíam muito dessa unilateralidade, pois trabalharam com informações sem contraposição no momento em que são veiculadas, o novo web-marketing é ainda mais unilateral. E têm a vantagem de serem mensagens dirigidas a públicos escolhidos por sua maior receptividade e capazes, portanto, de reproduzir os conteúdos indefinidamente.

A campanha de Bolsonaro, baseada na de Obama e Trump, dirigiu-se a um público previamente conhecido, uma minoria de direita, basicamente de classe média, potencializando e transformando a insatisfação em ódio. O ódio contra a “esquerda corrupta”. Ódio contra a defesa dos “direitos humanos de bandidos que geram a violência das ruas”, ódio contra homossexuais e professores que querem “ensinar nossas crianças a serem gays”.

Se isso ocorreu com a classe média de direita, o povão que na sua maioria aderiu, foi fisgado pela insatisfação com o desemprego e a violência urbana.
Mas o que eu quero resumindo o que já se sabe sobre a campanha de Bolsonaro? Demonstrar o quão importante é o conteúdo ideológico apresentado de forma simples, direta e antenada com as principais insatisfações populares.

E enquanto a esquerda fala de democracia, elites (sem dizer quais) desenvolvimento, reparação social, conciliação de capital e trabalho e o empoderamento feminino, a direita foi direto ao ponto com os inimigos implacavelmente definidos e, muitas vezes, personificados em Lula e Dilma.
E também a luta ideológica, contra o comunismo dissoluto, o socialismo da Venezuela, o esquerdismo dos direitos humanos dos bandidos.

Esqueceram Eduardo Cunha e concentraram em Lula, preso por corrupção. Desprezaram o eleitorado do centro e de esquerda e concentraram-se em juntar o ódio pré-existente da classe média à insatisfação popular com três fatores básicos: o desemprego, a violência e a corrupção. Deixaram a agenda dos costumes com os evangélicos e seu imenso potencial de militância.

Ganharam as eleições e agora estão no Governo. Conquistaram o governo nas urnas e estão tratando de consolidar a conquista do Poder com alianças com o DEM dos banqueiros e das telecomunicações, o PP das empreiteiras, o PR dos negócios novos, com a parte do PSDB da burguesia paulista, e com a parte do PMDB fisiológico. E, é claro, articulações com o judiciário de Curitiba ao STF. Essa recomposição com a direita tradicional já obteve duas grandes vitórias: as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com dois quadros jovens do DEM. Com os governadores dos maiores estados da federação completa-se a obra de reaglutinação da direita e parte do centro com a ultra-direita.

A aliança com o DEM e parte do PSDB (João Dória, especialmente) vai possibilitar ao núcleo duro neo-liberal radicalizar ainda mais seu programa econômico anti-nacional, rentista e restritivo aos direitos dos trabalhadores.

Enquanto isso a forte presença militar no governo de Bolsonaro ainda é uma certa incógnita. Pode ser um “poder moderador”, porque ao menos os generais têm curso de Estado Maior, noções constitucionais e, presume-se, um resíduo nacionalista. Nessa área as noticias são contraditórias: Mourão se colocando como bastião do bom senso, contra a intervenção na Venezuela e se posicionando contra o decreto liberando a posse de armas assinado por Bolsonaro e Sérgio Moro. Mas em compensação este mesmo Mourão assinou decreto que mudou a regra de transparência sobre decretos oficiais. E o general Augusto Heleno manda espionar a Igreja Católica.

Como se sabe o governo de Bolsonaro é um arquipélago de grupos familiares, militares, economistas neo-liberais e de costumes. Mas rapidamente pode se reorganizar, juntando a extrema-direita, a direita tradicional e parte do centro fisiológico.

E a oposição?
E a esquerda?

Haverá uma oposição democrática agregando parte da direita tradicional, o centro e a esquerda? Esse parece ser o desejo da maioria das direções dos partidos de esquerda e de centro-esquerda. A formação de uma frente ampla em defesa da democracia. Pode ser que dê certo.

Interesso-me mais, no entanto, nos limites deste texto, a tratar da posição das esquerdas.

Além de cumprir o seu papel fazendo uma oposição aguerrida e, principalmente, inteligente, sabendo se utilizar das contradições no seio do governo, não temendo fortalecer os segmentos menos entreguistas e menos fascistas, valendo-se das modernas tecnologias, políticas e sociais de manejo de dados, a esquerda precisará também de novos métodos e novos conteúdos econômicos, culturais e sociais.

Podemos e devemos compor um amplo arco de alianças em defesa da democracia formal e representativa, mas não podemos esquecer que nesse arco amplo de alianças há interesses econômicos e sociais diversos e contraditórios.

Não vai ser suficiente ficar contra tudo que vier do governo, dizendo não sem apresentar alternativas. É preciso ter clareza quanto ao que combater e o que defender. Por exemplo, quanto ao mundo do trabalho. O governo talvez tenha feito uma bobagem ao apresentar a ideia de “carteira de trabalho verde e amarelo” e, nesse caso, será um combate fácil e frontal contra a ideia. Mas é preciso, também, ter uma proposta concreta, comunicável e inteligente, sobre os novos tipos de contrato de trabalho que a nova economia do conhecimento, ou a Economia Criativa, já esta praticando e praticará crescentemente na vida real. Vida e trabalho que muitas vezes estão além dos horizontes sindicais.

Ou seja, a esquerda não cabe apenas oferecer “resistência” a uma hipotética ditadura que pode vir a surgir do governo Bolsonaro.
Precisamos de uma ofensiva. Ofensiva que comece por reconhecer que, embora não tenhamos sido os principais derrotados de 2018, perdemos as eleições porque nossos governos não cumpriram o que de nós se esperava. Isso não aconteceu só no Brasil, mas também em outros países em que a esquerda e a centro-esquerda governaram. E a ultra-direita tem avançado no Brasil e no mundo com uma retórica “revolucionária” na forma, subversiva e, de fato, contra revolucionária.

O papel principal da esquerda não é apenas reconstituir o centro e assegurar o pleno restabelecimento da democracia formal. Essa é a tarefa do conjunto das forças democráticas, com a qual devemos colaborar firmemente porque, afinal, a democracia possibilita transformações profundas e revolucionárias.

Mas o nosso papel principal é lutar pela democracia social e pelos valores do trabalho e da vida. Por uma nova e moderna revolução democrática, social, sustentável e criativa. Retomar a bandeira da Revolução Brasileira na concepção, de Caio Prado Júnior que nada tem a ver com insurreição armada, derramamento de sangue e tomada de poder pela força. Segundo ele a “Revolução em seu sentido real e profundo significa o processo histórico assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas e sucessivos que, concretizadas em período histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade e em especial das relações econômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias sociais.”

A nós socialistas cabe lutar para que o desfecho histórico deste provavelmente longo processo revolucionário, seja uma sociedade socialista do novo tipo onde caibam a presença forte de um Estado de direito democrático, a iniciativa privada, o empreendedorismo individual e coletivo, a cultura e a tecnologia ao alcance do povo. Mas isso não somos nós, socialistas que determinaremos por nossa vontade ou desejo. Outras forças democráticas, outras correntes de pensamento de esquerda e centro-esquerda têm o direito e o dever de reivindicar outros rumos e outro caráter para a revolução. E o resultado final será fruto das condições históricas determinadas pelos fatores concretos. Voltando a Caio Prado Júnior, “a previsão marxista do socialismo não implica necessariamente a inclusão delas em todos os lugares e todos os momentos”.

Para deixar ainda mais claro, o que Caio Prado chamava de Revolução Brasileira é um processo de transformação profunda que vai além das definições apriorísticas de revolução socialista, revolução democrático-burguesa, a revolução burguesa. Pode ser uma coisa ou outra. Ou ainda as duas ou três coisas juntas, ou em etapas diferentes.

A construção teórica dessa revolução é, sim, tarefa dos socialistas e precisa incorporar o fato de que as estruturas econômicas, sociais, políticas e culturais do século XXI alteraram-se profundamente com o advento da revolução tecnológica e da “sociedade em rede” surgida da “transição da comunicação de massa para intercomunicação individual”. Como assinala Manuel Castells em seu livro “O Poder da Comunicação”.

Mas o componente mais necessário e urgente da teoria da Revolução Brasileira será a definição de um projeto nacional de desenvolvimento.
E este projeto precisa ter, como um dos seus eixos estratégicos a Economia Criativa, em todas as suas dimensões de inovação, tecnologia, cultura e sustentabilidade.

Será preciso, também, traduzir esses projetos em propostas coerentes que possam ser transformadas em bandeiras municipais, estaduais e nacionais. Um projeto nacional de desenvolvimento que oriente as ações do cotidiano a partir dos estados e municípios. E que possa ser traduzido em bandeiras para uma nova militância criativa e modernamente revolucionária.

 

 

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